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| Barriguda no Sítio Batatal |
A libélula, também chamada de tira-olhos, lavadeira ou jacinta, é um inseto alado que carrega consigo tanto ciência quanto poesia. Seu nome vem do latim Libellula, diminutivo de liber (“livro”), pela semelhança de suas asas com páginas abertas, como se a natureza escrevesse sua própria história no ar. É considerada um dos primeiros insetos a surgir na Terra.
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| A dança da libélula |
Com a habilidade de voar em todas as direções, até mesmo para trás, a libélula simboliza adaptabilidade e flexibilidade. Caçadora ágil, devora moscas, besouros e mosquitos em pleno voo, tornando-se guardiã silenciosa dos humanos. No campo espiritual, é vista como mensageira de transformação e renovação, lembrando-nos da força de superar desafios e acolher mudanças. Muitos acreditam que sua presença anuncia sinais do invisível, como se fosse um recado vindo do mundo espiritual.
Entre o mundo material e o simbólico, a libélula nos ensina que a vida é movimento e que o equilíbrio só se alcança quando aceitamos a impermanência. Assim como suas asas se abrem como páginas de um livro em movimento, nossas decisões compõem capítulos que revelam quem somos, tanto nos acertos quanto nos tropeços. É nesse entrelaçar de experiências que se desenha a verdadeira sabedoria da existência.
Desde o ano passado, acompanhamos descendentes de Francisco Camilo Nobre (1921-1993) que migrou para Recife na década de 1940. Gerações da família dos “Nobres do Batatal”, desejosos de reconciliação com suas memórias, retornaram para visitar e recordar vivências na grande casa de alpendre dos tios e avós. Hoje, no local — atualmente propriedade de terceiros — restam apenas ruínas tomadas pelo mato e lembranças, outrora, do clamor de vozes na casa cheia de gente.
Essas paredes desmoronadas guardam não apenas o pó do tempo, mas também o eco das vozes que ali se entrelaçavam em risos, histórias e afetos. O que antes era espaço de convivência, hoje é testemunho silencioso da passagem do tempo.
As origens da família remontam aos fundadores Martinho Vieira e Ana Tereza, no século XVIII, conforme discorre a antropóloga santanense Luitgarde Cavalcanti de Oliveira Barros em seu artigo Santana do Ipanema pelos Caminhos da Memória, integrante do livro Sertão Glocal: um mar de ideias brota às margens do Ipanema (Melo & Gaia, 2010).
Ancorada na História Oral e nos estudos sobre Memória Social, poderia montar uma galeria de personagens que povoam a Santana do Ipanema de minhas experiências guardadas na memória, percorrendo também as lembranças, os caminhos traçados no transcorrer do século e meio revividos por minha avó paterna, Maria das Virgens Nobre Cavalcanti, nascida bem ali no Batatal, onde crianças chegamos assustadas, nos benzendo na cruz das “Tocaia”. Morrendo de medo, rezamos para o morto de tiro não aparecer pedindo oração. Dizia-se que tinha sido um fazendeiro muito ruim e violento, que até batia na mulher, montando-a como se fosse um animal, cortando-lhe as virilhas com as esporas - “Um dia a família dela achou que já era demais e mandou uns cabras meterem-lhe bala!” A capelinha era cheia de rosários, cabeças, pés, e braços de gesso e de madeira, pagamentos de promessas e rezas pelas almas do purgatório. Depois vinha a árvore de barriga enorme, na Barriguda, anunciando que já estávamos chegando na "Moita do tio Antônio Nobre", tio só no respeito, porque na verdade ele era mesmo era primo de minha avó. Naquele tempo, nos anos quarenta, os mais velhos mandavam as crianças darem a bênção aos parentes mais velhos, que tinham de ser respeitados como tios. Por isto tínhamos antes de passar na Camoxinga onde tinha casa para os dias de feira e de festa o tio José Camilo, de rosário e fala mansa pai do famoso "bom balcão", dono de comércio no Recife - na rua da concórdia, Francisco Camilo Rodrigues Nobre. O Batatal era lugar dos Camilo, Nobre, Soares, Rodrigues, Vieira, Santos, Prazeres, todos eles, segundo tia Neném, tio Zezinho e vovó descendentes de Martim Vieira. Esse português teria adquirido sesmaria em 1815 no lugarejo de finais do século XVIII, passando a denominá-lo Santana do Ipanema, história que se perpetuava na memória social transmitida. Dizia-se que cada herdeiro do antigo proprietário recebera sua parte de terra, para ela se mudando e dando origem a um povoado, o melhor exemplo citado era o de Dona Joana, uma solteirona tia avó dos Camilo e dos Nobre, pessoa muito caridosa, herdeira de terra na Várzea que passou a ser conhecida como Várzea de Dona Joana. Louvando sua bondade extrema, dizia-se do milagre que realizara na seca de 77 (1877) distribuindo entre os flagelados toda a farinha guardada na despensa da casa, via que a cada dia aparecia mais e mais farinha no paiol. A notícia de milagre logo se espalhou atraindo tanta gente, que - acabada a seca - muitos retirantes não quiseram abandonar o povoado, hoje transformado no município de mesmo nome. Santana era um município imenso, que ia de Mata Grande a Palmeira dos Índios, na geografia dos antigos moradores (Melo & Gaia,2010, p.65-66).
Na paisagem árida e cinzenta, queimada pelo sol inclemente, ipês floridos se pintam da cor de fogo, como sentinelas vivas que saúdam os que ali chegam e se reconhecem na paisagem, nos símbolos e celebram suas raízes ancestrais no emaranhado plano da teia existencial.
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| Adelmo Nobre, celebrando suas memórias no Batatal |
No caminho dos escombros, encontrei exemplares de cordão-de-são-francisco já secos, no fim do ciclo. Novas sementes repousavam no chão esturricado, aguardando chuvas criadeiras. Na infância, quando em flor, alimentavam beija-flores e meninos traquinos. Depois, cortados, viravam brinquedos de rodas com eixos empurrados por varinhas em forquilha.
Ali perto, à sombra parcial das algarobeiras, um barreiro de águas pluviais esperava saciar a sede das reses, anunciadas pelo som dos chocalhos rompendo o silêncio sob o sol escaldante. Nesse instante de contemplação, vi libélulas bailando à flor d’água com vestidos de gaze e adereços de cristal. Com movimentos precisos, evoluíam no ar, tecendo beleza no calor abrasador para um único espectador.
A leveza desses seres parecia desafiar a dureza da paisagem. Era como se a natureza, em sua sabedoria infinita, oferecesse um contraponto: delicadeza que resiste mesmo onde tudo parece rude.
Naquele momento, compreendi que memória e presente se encontram na brandura desses seres alados. Entre ruínas e lembranças, a vida insiste em florescer. A dança das libélulas é mais que espetáculo da natureza: é metáfora da existência, que se renova e se reinventa, mesmo quando tudo parece ter chegado ao fim.
Encantado com a magia e graciosidade do momento, fiquei imóvel e em silêncio observando o comportamento dos seres minúsculos. Dali, só levei fotos e reflexões. Satisfeito, despedi-me e segui adiante.
Por fim, recordei então o depoimento do alagoano Aurélio Buarque de Holanda (1910-1989), lexicógrafo, professor, tradutor e crítico literário, autor do Dicionário Aurélio. Em entrevista, ao ser perguntado sobre a palavra mais bonita da língua portuguesa, após breve titubeio respondeu: Libélula.
Dezembro, 2025
Espetáculo João!!
ResponderExcluirA libélula , quando criança chamava- no de zigue-zague, foi o mote para discorrer sobre a origem de uma série de famílias de Santana do Ipanema que teve origem no Batatal e circunvizinhaça..
ResponderExcluirUma grande pesquisa..
Parabéns , Xará!!
Genial !!!!
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