Viajando pelas rodovias e estradas vicinais alagoanas é inevitável não perceber que às margens, em meio a agitação da vida moderna ou nos campos, existem cruzes nos lembrando que ali morreu alguém vítima de assassinato ou de acidentes de veículos.
No silêncio dos caminhos, onde o vento sopra poeira e lembranças, pequenas cruzes surgem como cicatrizes visíveis de vidas interrompidas. À primeira vista, parecem apenas madeira e tinta, mas há nelas algo que não se vê; promessas sussurradas, dores caladas, gratidões eternizadas.
Ninguém sabe ao certo quem as ergueu. Às vezes, é o próprio causador do infortúnio que ali fincou a cruz como um pedido de perdão. Outras vezes, é a mãe de olhos inchados de saudade, ou o devoto que recebeu um milagre e ali crava sua fé em forma de madeira. Há quem diga que aquelas almas podem interceder por nós, como se cada cruz fosse uma ponte entre o chão e o céu.
Pedrinhas cercam esses altares improvisados. Algumas são deixadas por quem passa e não pode acender uma vela. Nesse caso, uma pedra também guarda essa intenção. Outras parecem flores de pedra, crescidas no concreto em homenagem ao que foi e ainda é. Cada uma carrega um gesto simples: lembrança, súplica ou respeito.
É curioso como esses pequenos marcos, muitas vezes ignorados pelo olhar apressado, guardam em si tanta vida; ou melhor, tanta continuidade da vida. Porque mesmo na morte, ali pulsa fé, ali vive esperança. E assim, pelas margens das estradas e rodovias, a espiritualidade cotidiana se firma em silêncio, envolta pelo ronco dos motores distantes ou no murmúrio do vento ali sempre presente.
No dia 17.12.2024, fizemos uma viagem para tratar de assuntos pessoais na cidade de Bom Conselho PE. Enquanto trafegava na rodovia BR 316, na proximidade do trevo de acesso ao bairro Palmeira de Fora de Palmeira dos Índios, havia interdição parcial da pista e uma aglomeração protegia um corpo sem vida estirado no asfalto. Em cima do canteiro do trevo uma caminhonete envolvida no acidente aguardava a chegada das autoridades. No acostamento, do lado oposto da pista, uma moto retorcida denunciava a gravidade do acidente. Consternados, seguimos a viagem.
No retorno, próximo do meio-dia, paramos no acostamento da rodovia AL-115 que se interliga com a BR-316 para comprar umas pinhas, frutas abundantes no período. Era inevitável comentar com o vendedor sobre o acidente que a gente tinha visto de manhã. Ele confirmou que era uma mulher que ele conhecia e que a família morava ali perto. Comentou que ela, por inexperiência, tinha provocado o acidente visto que não parou antes de fazer a conversão na autovia.
O corpo, agora coberto por um lençol, ainda estava no asfalto. Dentre os presentes, estavam o viúvo cadeirante, algumas pessoas e patrulheiros rodoviários protegiam o local enquanto aguardavam a finalização dos procedimentos legais. Uma viatura interditou parcialmente uma faixa da pista onde estava o corpo.
A imprensa local divulgou a notícia nas redes sociais: “Uma mulher, identificada como Juciara Carnaúba, morreu na manhã desta terça-feira (17) após colisão envolvendo um carro e uma motocicleta no trevo que dá acesso ao bairro Palmeira de Fora, em Palmeira dos Índios.
De acordo com as primeiras informações, Juciara estava em uma motocicleta e seguia pela BR-316 no momento da colisão. Não foi divulgado o que teria causado a colisão. A vítima residia próximo ao posto Pé da Serra”. Rádio Sampaio, 17.12.2024.
No dia 13 de junho passado, sexta-feira, quando a gente retornava de uma viagem praticamente 6 meses depois, passando pelo local do acidente, percebemos que à margem da rodovia foi construída uma igrejinha rústica, menor que um túmulo, com uma cruz na parte mais alta. Surgia, então, o que na linguagem popular e religiosa se denomina de santa-cruz-de-beira-estrada, perpetuando um costume antigo.
A morte é um mistério que desafia a compreensão humana. Apesar de sabermos que somos mortais, resistimos à ideia do fim. Epicuro, filósofo materialista, tentou naturalizar a morte ao afirmar que ela “nada é para nós”, pois é ausência de sensação. Ainda assim, a visão racional não foi suficiente para eliminar o temor coletivo.
Ao longo da história, os seres humanos buscaram dar sentido à morte por meio de rituais, crenças e simbolismos. Desde os neandertais até civilizações modernas como os gregos, israelitas e cristãos, a morte foi envolta em práticas funerárias que expressam a tentativa de controlar o incontrolável e preservar a identidade dos mortos.
A religião, mais do que a razão, foi o principal instrumento para lidar com esse mistério. Cada cultura moldou sua visão da morte conforme sua psique coletiva, criando narrativas sobre o além-vida, julgamento, ressurreição ou imortalidade simbólica. Assim, morrer deixou de ser apenas um fim biológico e passou a ser um rito de passagem profundamente enraizado na cultura e na espiritualidade humana.
O cristianismo ressignificou a morte na Antiguidade Ocidental, transformando-a de um fim temido em uma passagem gloriosa para a vida eterna. Para os primeiros cristãos perseguidos, morrer por Cristo era um ato de fé e vitória espiritual, como defendido por Santo Agostinho, que também refletiu sobre a continuidade do vínculo entre vivos e mortos.
A crença na ressurreição e no valor sagrado do corpo levou à valorização dos ritos funerários e ao cuidado com os mortos, como forma de expressar fé na vida após a morte. Essa visão moldou a cultura cristã e influenciou práticas sociais e religiosas.
O simbolismo das cruzes à beira das estradas contrastam com a paisagem moderna e revelam a presença da morte em locais de acidentes. Esses memoriais, muitas vezes adornados com flores, fotos e orações, expressam uma prática enraizada no catolicismo popular sertanejo, herança da colonização portuguesa.
A morte, sem explicação definitiva, é compreendida por meio da fé. No catolicismo, vivos e mortos mantêm uma conexão espiritual: os vivos rezam pelos mortos, e os mortos intercedem pelos vivos. Essa relação se manifesta em práticas devocionais e na manutenção dos memoriais, que funcionam como rituais de cuidado e lembrança.
Naquele solitário pedaço de asfalto negro, bem ali ao lado, entre garranchos, arbustos nativos e uma touceira de jitirana rosa, um farol ilumina a ponte escatológica entre o céu e a terra.
Julho, 2025
Diante dessas cenas inesperadas é que nos damos conta da transitoriedade da vida. E refletimos sobre o assunto durante alguns dias, alguns meses. Depois, chega a roda-viva e carrega a tudo pra lá (como diria o poeta), como se nunca mais fôssemos nos deparar com cena parecida.
ResponderExcluirBelíssimo texto, João! Parabéns!
A morte realmente é um mistério. Confrade João Neto, nos traz nesse belo texto, esse poderoso elemento a fé. Erguer à beira da estrada, onde todos passam e vão embora, um simbólico monumento a um finado, é um ato de fé. Valeu confrade, pela reflexão. Tem pessoas que na semana Santa, se dirigem a estes locais para elevar a Deus uma oração pelos seus entes queridos. ass. Fabio Campos.
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