O silêncio das horas

 



Na pequena cidade de Santa Ana, não era o relógio de pulso nem os despertadores que regiam o dia: era o sino do relógio da torre da igreja, alto e pontual, que dobrava as horas como quem conta histórias ao vento.

Às seis, ele chamava os padeiros. Às oito, acordava os estudantes. Às doze, lembrava aos fazendeiros que era hora da marmita. E, às dezoito, seu som profundo avisava que o dia podia sossegar. Era um compasso invisível, como um maestro de bronze que regia o tempo com seu timbre atemporal. Mas numa manhã de céu emburrado, o sino não tocou.

Sino do Relógio
Primeiro, pensaram ser atraso. Depois, falha técnica. Mas o silêncio perdurou. E com ele, as rotinas começaram a se embaralhar. O padeiro assou os pães tarde demais, os alunos chegaram à escola com olheiras e confusão, e até o tempo pareceu andar em círculos, meio perdido sem seu guia.

Com os dias, a cidade pareceu murchar. O mercado abriu sem vontade. A missa das sete teve bancos vazios. E Dona Maria, que sempre sabia a hora só de ouvir o sino, passou a olhar o céu como quem procura uma resposta.

Dizem que o sacristão subiu à torre e encontrou tudo como sempre; o sino, ali, inteiro, sereno. Apenas calado.

Desde então, Santa Ana vive entre a pausa e a esperança. Os moradores baixam os olhos ao passar pela igreja, como quem espera que, a qualquer momento, aquele som antigo volte a rasgar o ar. Até lá, vivem na espera, como quem prende o fôlego antes da próxima nota porque sabem, no fundo, que o sino não marcava só o tempo. Ele marcava a vida. Entretanto, o tempo foi passando e a cidade foi ignorando e se acostumando com o silêncio das horas.

Máquina do relógio

O costume de ouvir as badaladas do sino da igreja marcando as horas é mais do que um simples hábito sonoro é um elo vivo com a história de uma comunidade. Esse som, que atravessa as ruas e alcança os lares, marca o tempo de forma coletiva, criando uma espécie de compasso invisível que nos conecta aos nossos antepassados e à rotina de outrora. Manter essa tradição é preservar uma identidade cultural que resiste à pressa e ao ruído da modernidade digital.

Além disso, o sino tem um valor simbólico que vai além da função prática de marcar o tempo. Ele chama para a reflexão, para a pausa, e em muitos lugares, ainda convoca para a comunhão. Ouvi-lo é lembrar que há uma espiritualidade e uma memória coletiva que merecem ser honradas. Reavivar e manter esse costume é, portanto, um gesto de respeito ao passado e uma forma silenciosa de afirmar quem somos como povo.

O relógio original da igreja matriz foi instalado na torre de 35 metros construída na grande reforma em 1947, sob a coordenação do padre Fernando Medeiros(1910-1984), durante o evento denominado II Feira Noturna de Atração. Para viabilizar os recursos necessários para a construção foram realizadas inúmeras edições de feiras noturnas com doações dos agricultores e pecuaristas da região. Foi uma obra muito dispendiosa que mudou radicalmente a arquitetura da igreja, incluindo a torre até então inexistente.

Campanário
O campanário é a parte da torre dedicada à fixação dos sinos. O vão se compõe de quatro arcadas ogivais para circulação do vento e fixação dos instrumentos sonoros, seguindo o mesmo formato das portas, janelas e acessórios de embelezamento arquitetônico.

Em muitas culturas, os sinos são associados à proteção espiritual. Na mitologia grega, por exemplo, eles estavam ligados a Príapo, deus da fertilidade, e na romana, a Baco, deus da inspiração poética. Há lendas que dizem que o som do sino afasta maus espíritos e anuncia momentos sagrados. Em algumas regiões do interior do Brasil, acredita-se que o toque do sino pode “chamar a chuva” ou “acalmar as almas”.

Na tradição cristã, os sinos são considerados instrumentos sagrados. Cada sino é abençoado, recebe um nome (muitas vezes de um santo) e uma nota musical própria. Eles marcam o tempo litúrgico, anunciam missas, funerais, festas e até desastres. Em cidades como São João del-Rei (MG), a linguagem dos sinos foi reconhecida como Patrimônio Cultural Imaterial pelo IPHAN. Os toques — como o dobre, o repique e o dobre duplo — seguem um calendário litúrgico e são executados por sineiros experientes.

O mais lembrado de todos os sineiros da paróquia de Santa Ana foi o senhor Luís, apelidado de “Major”. Depois dele, tantos outros anônimos trabalharam para fortalecer a tradição. Poucos sabem, mas até o cego Liô foi zelador do relógio da matriz.

Em 2015, durante o paroquiato do padre Adauto Vieira, o relógio da matriz, embora funcionando, deixou de repicar as horas por defeito no mecanismo. Foi recuperado e voltou a funcionar. O sino do relógio é percutido por uma marreta externa acionada pelo mecanismo acoplado ao relógio.

Em julho de 2021, sob a coordenação do padre Jaciel, os sinos foram substituídos por novos exemplares e um foi reformado. Após breve período de funcionamento, o mecanismo voltou a apresentar defeito e, desde então, permanece em silêncio.

A cidade de Santa Ana aguarda ansiosamente que o sino volte a despertar o sertão.


Junho, 2025

Comentários

  1. Contagem do tempo, essa criação fictícia criada pelo ser humano, para dar-lhe esperança pelo amanhã e distanciar-se do ontem, foi muito bem tratada aqui, através de um ritual simbólico, marcado pelas ondas sonoras de um badalar cadenciado. Excelente crônica para começarmos a semana.

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  2. Viagem ao passado. Ótimo. Abraço.

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  3. O relógio da Igreja Matriz de Senhora Santa Ana e o seu badalar na regência dos seus moradores. Como também, o linguajar dos sinos avisando aos fiéis sobre o horário da missa, a eucarística, a saida da procissão, o aviso de morte
    de um dos seus moradores , adultos e crianças , o mestre sineiro que transmitia esses sinais através dos badalares dos sinos era o famoso Major. Até então,não sabia o nome próprio do Major , só agora através da pesquisa de João de Liô e que fiquei sabendo que o nome dele era Luís.
    Parabéns, Xará pelo crônica..

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  4. Parabéns confrade João Neto Félix pela crônica, mesclada de informações, cultura, história, e pontilhada de saudosismo. Tudo na medida certa. Remeteu-me a tempos idos, a ponto de ouvir ressoar nos ouvidos, o nostálgico som das badaladas do sino da matriz de Senhora Santana. Muito bom , muito bom. Num providencial início de julho, tudo isso, é bem isso! Lembranças, recordações, reminiscências... ass: Fabio Campos.

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