Catenga no jardim |
Não estou me referindo às pescas convencionais no rio Ipanema ou no riacho do Bode, grande lago santanense formado por represamento. Nesses lugares eu fui a pescarias artesanais em diversas fases da vida em busca de contato com a natureza e o silêncio. As minhas habilidades como pescador são limitadas, admito.
Minhas investidas pesqueiras quase sempre resultaram infrutíferas, contudo eu gostava mesmo assim. A melhor parte era o tempo que se perdia em contato com a natureza, ouvindo o som das águas, dos pássaros e do silêncio que reinava e, de graça, eu me perdia nos meus pensamentos. E se, de repente, meu punho sentisse alguma fisgada no anzol, meu coração acelerava a mil por hora. Porém, passou a vez! Os seres das águas são mais ágeis que eu.
Inesquecível foi uma pescaria que fiz na companhia do saudoso tio Abílio, no riacho do Bode. Ele levou um puçá, que é uma pequena rede de pesca indígena para pegar o crustáceo de pequeno porte denominado “saburica” que era abundante no lago. Infelizmente, a pesca predatória os extinguiu. O nome refere-se a um tipo de camarão, especificamente à espécie Macrobrachium jelskii, que é conhecido popularmente no Brasil como "sossego" e no estado de Sergipe como "saburica". Foi a única pesca em que houve fartura e encheu o puçá. Meu tio conhecia o ofício, afinal havia morado às margens do Rio São Francisco em Propriá.
Nos anos finais da década de 1960 os meninos da rua frequentavam a casa de seu Diógenes Medeiros Wanderley(1928-2004), de saudosa memória e dona Mirna, incluindo os filhos Amaury e Geni, que eram da minha faixa de idade. Ricardo já era adulto. Todos do primeiro casamento. Seu Diógenes era viúvo e o Cid, do segundo casamento, nasceu muitos anos depois. Seu Diógenes e dona Mirna nos recebiam muito bem. Ele era alto, cabelos brancos e fala mansa. Era servidor do extinto DNER, atual DNIT. Dona Mirna sempre foi muito amável conosco.
Foi lá que assistimos na tevê em cores os seriados da extinta TV Tupi: A Família Robinson, Viagem ao Fundo do Mar e os Waltons (John Boy era um personagem que adorava escrever). Os episódios terminavam sempre do mesmo modo: Os filhos no quarto, prontos para dormirem e, enquanto as luzes dos quartos eram apagadas, de um em um, todos cumprimentavam o irmão mais velho: - Boa noite, John Boy! Nunca me esqueci!
Morávamos na Avenida Nossa Senhora de Lourdes. Contíguo à residência dos Medeiros Wanderley tinha um terreno que se conectava com outras ruas; de um lado Av Martins Vieira e na outra, rua Marileide Bulhões. A garagem ficava neste terreno, onde seu Diógenes estacionava o seu Vemaguet pela rua Martins Vieira. DKW-Vemag foi uma empresa brasileira que produziu veículos sob licença da alemã DKW, entre 1956 e 1967. A Vemag foi a primeira fábrica de automóveis no Brasil, e seus carros, como o Belcar e o Vemaguet, marcaram a história automobilística do país.
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Melão-de-são-caetano |
A chácara era delimitada por cercas de arames farpado e estacas de madeira. O ano todo, as ramas de melão de São Caetano tomavam conta das cercas formando uma rede de proteção natural. A safra dos miúdos melões amarelos enfeitavam a rua. Maduros, a casca espinhosa se abria deixando à mostra sementes encarnadas, envolvidas numa polpa doce comestível. Era uma festa para os bichos e a meninada. No pequeno sítio, tinha muitas fruteiras; pinha, banana, manga, cajueiro e goiaba. Era naquele pedaço de terra fértil que a gente promovia a maior parte das nossas peraltices. Calangos, catengas, pássaros e meninos concorriam à liberdade.
Confesso, sou culpado. Também fiz muitas presepadas. Algumas famílias das vizinhanças nos faziam uns pedidos misteriosos, mas a gente atendia e não perguntava nada e só pensava na recompensa. A missão de capturar os pequenos répteis e entregá-los vivos não exigia grandes esforços.
Com uma vara de pescar convencional a gente substitui o anzol, por um laço, no final da linha de nylon. O resto era a paciência para encontrar os bichos em paredes dos muros e nas pontas de estacas das cercas. Como éramos velhos conhecidos, havia uma linha tênue entre a confiança e a traição que era uma armadilha cruel em desfavor das lagartixas.
Os animais foram entregues vivos e até hoje não sei do paradeiro. Os prêmios eram convertidos em flaus. "Flau" é um termo usado em Alagoas para se referir a um tipo de picolé congelado dentro de um saco plástico, feito com frutas ou essências. Em outras regiões, ele pode ser chamado de "sacolé", "din din" ou "geladinho". É uma delícia refrescante, especialmente nos dias quentes!
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Catenga acrobata no jardim |
Hoje, ao olhar para trás, reconheço que as minhas ações não me trouxeram nenhum orgulho, muito pelo contrário! Fui condenado no tribunal dos teiídios e sentenciado a proteger a espécie pelo resto da vida. E aceitei de bom grado a minha pena. Aqui em casa, no meu pequeno jardim, nem sei quantas catengas já salvei das garras afiadas dos felinos Valentina e Toni, que são implacáveis na tortura dos répteis. E as catengas, fingindo-se de mortas, seguem suas sinas mais vivas do que nunca.
Maio, 2025
Tenho um colega de infância que era um exímio "matador" de calangos, usando para isso seu estilingue (que em nossa região era chamado de peteca). Tinha uma pontaria de um verdadeiro sniper. Lembro-me de certa vez, ao retornarmos da aula, ele chamou-me para mostrar seu feito. Estava atrás de um muro uma fila de calangos abatidos. Coisas de criança, que com o tempo passou e só ficou na memória, com o arrrependimento, ainda que tardio. Hoje ele é um profissional gabaritado, diretor de um enorme banco privado. A crônica de hoje fez-me retornar umas cinco décadas no túnel do tempo. Valeu, João!
ResponderExcluirJoão, só hoje li sua crônica. Sensacional... você sabia que as catengas são predadoras dos escorpiões? Cuide bem delas no seu jardim ☺️☺️☺️☺️
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