Há um sol nascente avermelhando o céu escuro ( Memórias Musicais - parte II - Taiguara )






Na minha casa, a música era mais do que um som de fundo; era parte do próprio ar que respirávamos. Desde cedo, cada canto ressoava com melodias que se tornaram memórias, tanto no rádio sintonizado na voz rouca de um velho cantor ou no desgastado cavaquinho que meu pai ainda conservava no guarda-roupa e que, de vez em quando, dedilhava recordando antigas canções.

A música não era luxo, mas sim linguagem, um fio invisível que costurava nossos dias e nos ensinava, sem que percebêssemos, sobre emoção, ritmo e pertencimento. Foi assim que, sem necessidade de grandes discursos, aprendi que o acesso à música desde a infância não foi apenas entretenimento, era um passaporte para entender o mundo e a nós mesmos.

Conhecer as canções de Taiguara(1945-1996) ainda na adolescência para mim foi deveras desconcertante. Com lirismo refinado e uma coragem incontestável, ele transformou sua arte em instrumento de resistência, enfrentando censuras e deixando um legado que transcende gerações. Uruguaio de nascimento e brasileiro de coração cujo nome, em tupi-guarani, significa “livre”, deixou-nos um repertório rebuscado e poético. Filho de Ubirajara Silva, maestro e bandoneonista e Olga Chalar, cantora de tango.

Uma das mais belas vozes, pianista exímio, letrista romântico, libertário, ancorado no realismo esperançoso. Sua poesia permeia a melancolia, ao mesmo tempo em que predomina a resiliência de quem acredita na força das palavras que rompe a aurora fazendo cada dia novo. Era como ter um irmão mais velho que fazia discursos contundentes ao cantar. Embora ainda me faltasse a compreensão, ouvir suas canções era um alento poderoso com a força de acalmar um inquieto coração juvenil.

Em “Carne e Osso” de 1971: (...) Eu grito sim, mas grito meu lirismo. E o meu grito vai sanar minhas feridas(...) (Clique para ouvir)

Esse trecho carrega um desejo profundo de renovação e de busca por algo maior do que meras novidades: uma sede genuína por experiências que ampliem horizontes. O eu que deseja e clama, não um grito de desespero, mas de afirmação poética - um clamor que carrega seu lirismo e que, de alguma forma, tem o poder de curar as feridas. É como se a arte, a expressão e a sensibilidade fossem o remédio para as dores acumuladas, como se a poesia e a música fossem formas de reconstrução interna e libertação.

Frequentou as paradas de sucesso das rádios e os festivais de música nos anos 1960 e 1970 com melodias bem elaboradas, como: “Hoje”, “Universo no Teu Corpo” e “Que as Crianças Cantem Livres”.

Em “Viagem”, de 1971: (...) Vai, recupera a paz perdida e as ilusões. Não espera vir a vida às tuas mãos. Faz em fera a flor ferida e vai lutar pro amor voltar (...) (Clique para ouvir)

Os versos expressam um apelo à renovação e à superação da dor emocional. A canção incentiva o ser a abandonar um estado de apatia e sofrimento, buscando um lugar onde a angústia se dissipa e a solidão perde sua dureza. Há uma forte mensagem de transformação, sugerindo que o amor e a esperança podem ser resgatados por meio da ação e da luta. O eu lírico exorta a pessoa a recuperar sua paz interior e seus sonhos, não apenas esperando que as circunstâncias mudem por si mesmas, mas tomando controle da própria vida e enfrentando as adversidades com determinação. É um chamado à coragem e à ação para que o amor possa florescer novamente.

Em “Em algum lugar do mundo” de Ivan Lins e Ronaldo Monteiro de Souza, de 1970: (...) Pois em qualquer lugar do mundo só uma coisa a gente vê. É que a pior morte que existe, é se viver inutilmente. (Clique para ouvir)

Há uma profunda reflexão sobre a brevidade da existência e a urgência de viver com propósito. Reforça a ideia de que a pior forma de "morte" não é física, mas sim viver sem significado. Assim, a música nos convida a buscar algo maior, para que nossa jornada não seja desperdiçada.

Ganhou notoriedade não apenas pelo conteúdo da sua obra, mas também pela militância contra a censura. Taiguara teve, mais ou menos, cem composições reprovadas pelo crivo da ditadura militar, figurando entre os artistas mais censurados.

Em “Que as crianças cantem livres”, de 1973: (...) E que as crianças cantem livres sobre os muros. E ensinem em sonho ao que não pode amar sem dor. E que o passado abra os presentes pro futuro que não dormiu e preparou o amanhecer(...) (Clique para ouvir)

As crianças, livres e cantando, simbolizam inocência e mudança, ensinando aqueles que ainda carregam dor. Há um desejo de que o passado se abra para construir um futuro promissor, que já está sendo preparado, reforçando a ideia de transformação e evolução constante.

Em “O Piano e a Viola”, 1989: (...) Sorriso bom só de dentro. Ninguém é bom sendo o que não é. Eu, pra ser feliz com mentira, melhor que eu chore com fé (...) (Clique para ouvir)

Versos que refletem a busca pela autenticidade e pela verdade interior. A felicidade genuína nasce de dentro, não pode ser forçada ou baseada em ilusões. Reforça a ideia de que é melhor enfrentar a dor com sinceridade do que viver uma felicidade construída sobre mentiras. O poema aponta para uma aceitação honesta dos próprios sentimentos e uma rejeição da superficialidade.

Destacar alguns trechos de suas canções foi um desafio imenso pois sou admirador de toda sua obra. Não tenho palavras que possam descrever minha gratidão às pessoas que me proporcionaram a oportunidade de conhecer suas canções que permanecem atuais e ainda me emocionam.


Abril, 2025


Para saber mais clique:  Canções e Momentos
Rocha, Janes. Os Outubros de Taiguara. Um artista contra a ditadura: Música, Censura e Exílio. Kuarup Produções Ltda. São Paulo. 2014





Comentários

  1. Puxa vida, João.... que análise perfeita... quando criança eu gostava muito das músicas de Taiguara...depois até esqueci... mês passado bateu aquela vontade de ouvir novamente...como são belas as canções...voz inconfundível.... parabéns

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  2. João, a música foi, é e sempre o mais doce alento em dias tão turvos! Parabéns pela excelente texto!

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  3. Sensacional, João. Irretocável. Sem falar na voz inconfundível do Taiguara... Parabéns

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  4. Crônica lapidada com o zelo de quem compõe uma bela canção, para ser ouvida e ouvida e ouvida. Lemos e temos a sensação de ter o fundo musical presente em cada frase, em cada parágrafo. Parabéns pelo belo texto, João.

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    1. Fernando, você não sabe como as canções de Taiguara foram e continuam sendo importantes para mim.

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  5. Sinhô,
    Você, mais do que qualquer outra pessoa, sabe que gosto muiiiito de música mas não entendo nada de...
    De Taiguara só sei o nome esquisito mas alumiado por sua explanação vou ouvir o artista com "outros ouvidos".
    Sobre seu estilo de escritor sou suspeito pra falar pela admiração já manifesta novamente e por escrito.
    Abraços do Antonio Sobrinho

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    1. Tonho, ouça com vagar que o Taiguara vai te conquistar. Pode crer! Obrigado!

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  6. Hayton Rocha28/04/2025, 09:17

    Belíssimo texto, João.
    Lembrei-me de quando, ainda adolescente, conheci uma certa Maria com quem me deito até hoje, mais de cinco décadas depois.
    O inesquecível Taiguara deve ter antevisto algo quando compôs “Maria do Futuro”:
    “…Duna branca, lua imensa, Maria deita
    Nua e branda como as nuvens que a lua enleita
    Duas tranças, uma flor e Maria enfeita
    Suas mansas curvas cheias que a areia aceita…”

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