Vou-me embora, vou-me embora, prenda minha

 



Eu saí para visitar um cliente na zona rural. Era o início da tarde e o sol brilhava com intensidade. Eu gostava de dirigir em estradas vicinais de chão batido. A velocidade mais lenta me dava a oportunidade de apreciar os cenários rurais tão peculiares e cativantes. As cercas de arame farpados pareciam infinitas, porém nada é tão livre quanto o pensamento. Algumas árvores vestidas de amarelo se confundiam com o nome popular da região, Pau Amarelo, Taquarana.

Eu seguia devagar por aqueles caminhos de piçarra avermelhada, lembrando que também sou terra, elemento que simboliza capricornianos como eu. Quando cheguei na Fazenda Varginha, fiquei impressionado com a imensa plantação de amendoim. Eu já sabia de antemão. Quando parei na casa sede, procurei uma sombra para estacionar. Ao longe, uma reserva de mata coroava aquele pedaço de terra pelo verde intenso que irradiava calmaria e paz. De pronto, fomos conhecer de perto as plantações cujo fruto é subterrâneo.

De volta a casa, acompanhado pelo Eduardo, paramos um pouco para tomar água e aliviar a sede. Quando adentramos, deparei-me com um piano preto ¾ de cauda, marca Yamaha, na sala. Subitamente, minha alegria se revigorou. Esqueci a sede e me dirigi rapidamente ao instrumento. Abri-o imediatamente e, sem pedir licença, comecei a teclar alguns acordes da canção “Smile” (1936), de Charles Chaplin. (Clique para assistir) Em seguida, percebi que havia despertado seu Luiz da sua sesta. Desculpei-me. Ele confidenciou que pensava que estava sonhando, pois era improvável que outra pessoa estivesse ali, naquele momento, tocando seu piano.


 Luiz Graeff Teixeira (1946-2023) tocando seu piano Yamaha. Foto do autor


Pedi para que tocasse algo. Seu material de estudo já estava ao lado. Sem pensar muito, pegou uma das partituras, concentrou-se, cerrou e estirou as mãos algumas vezes e iniciou. Seus dedos cadenciados deslizavam no teclado de um lado para o outro. Ao som dos primeiros acordes fomos chegando mais perto, afinal se tratava de famoso trecho do primeiro movimento da Sonata ao Luar (1801), de Beethoven. Nesse instante, a cadela Joycinha deitou-se solenemente no tapete onde estava o instrumento e ficou ouvindo o concerto do seu fiel amigo. O piano estava tão desafinado que doía nos ouvidos. No final, aproveitei e perguntei:


- Como o senhor consegue estudar e tocar com o instrumento nessas condições?

Ele respondeu pacificamente: 

- Eu não tenho outra alternativa. Vai assim mesmo!

Dali em diante, mantivemos contato próximo e eu firmei o compromisso de conseguir um técnico afinador para reparar seu piano até o final daquele ano.

Em dezembro, contatei-o para avisar que o afinador iria ligar para combinar a data do serviço. Dias depois, seu Luiz me ligou feliz da vida para agradecer, informando que o seu piano já estava regulado e harmônico.

Antes do Natal, voltou a me ligar dizendo que naquela noite queria me fazer uma visita. E veio! Trouxe na bagagem vinho, bombons e gestos fraternos de um bom amigo. E para celebrar aquele encontro nada melhor do que música, afinal aqui também tem um piano, não Yamaha, mas Essenfelder, tipo armário.

Seu Luiz, o mais nordestino dos gaúchos que conheci, tocou lindamente “Prenda Minha” do folclore gaúcho. (Clique para assistir) O meu desafio era tocar o hino sertanejo Asa Branca(1947), de Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira. Não me neguei e assim meio acanhado cumpri meu desafio, pois nessa vida cada um faz o que sabe. Propus um novo encontro, no futuro, pra gente homenagear o famoso gaúcho Lupicínio Rodrigues, mestre da "Dor de Cotovelo": “Esses moços, pobres moços, ah se soubessem o que sei…”

Foi assim que conheci seu Luiz e não houve mais encontro algum. Apenas mensagens via Whatsapp até silenciar de vez. Eu fui embora para encerrar minha jornada profissional. Com pesar, recebi a notícia do seu falecimento no final de dezembro de 2023, quase um mês depois, através do mesmo técnico que nos assistia e estava ajustando o meu instrumento. Ele me deu a notícia, quando eu perguntei sobre a afinação do piano de seu Luiz.

Gaúcho passo-fundense, vivia em Alagoas desde os anos 2000. Formado em agronomia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Foi um dos principais pesquisadores e incentivadores do Plantio Direto no Rio Grande do Sul. Ajudou a revolucionar a agricultura brasileira com o desenvolvimento da técnica que é um método diferenciado de manejo do solo visando diminuir o impacto das máquinas agrícolas. As sementes são colocadas no solo não revolvido - sem prévia aração ou gradagem leve niveladora - usando semeadeiras especiais. Afirmava com ênfase que o Nordeste iria alimentar o Brasil, segundo seu filho Eduardo.

Apaixonado pelos costumes gaúchos e nordestinos era defensor ferrenho das tradições regionais. Tinha formação em música e piano. Assim como veio, partiu… 




Vou embora, vou-me embora,
Prenda minha,
Tenho muito que fazer.
Tenho de ir parar rodeio,
Prenda minha,
No campo do bem-querer.


Noite escura, noite escura,
Prenda minha,
Toda noite me atentou.
Quando foi de madrugada,
Prenda minha
Foi-se embora e me deixou.


Troncos secos deram frutos,
Prenda minha,
Coração reverdeceu.
Riu-se a própria natureza,
Prenda minha,
No dia que o amor nasceu.




Março, 2024

Comentários

  1. E assim vamos nós. Fazendo e vivendo histórias da vida e de vidas. Vida Eterna somente em Jesus Cristo. Está escrito!

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  2. Fernando Chagas26/03/2024, 08:31

    Mais um exemplo das belezas que a música faz, de aproximar pessoas, muitas vezes tão diferentes, mas com um denominador comum nas notas musicais. E pegando parte do título da crônica, lembrei-me da letra de Paulo Diniz, na também belíssima "Vou-me embora". Belo formato, João, transformar memória em forma de crônica com trilha sonora.

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    1. Fernando você tem razão. Minha opção por "Prenda Minha" foi para homenagear esse gaúcho querido que tocou o tema aqui em casa.

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  3. Hayton Rocha26/03/2024, 15:14

    Texto maravilhoso, João. Chega a ser cinematográfico: ao piano, uma canção do folclore gaúcho em pleno sertão alagoano.

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  4. Boa noite Xará!
    Tivemos o prazer de compartilhar da mesma amizade e ele, Seu Luiz, como carinhosamente eu o chamava, já copiando o seu filho Eduardo, me contava, repetidas vezes esse ocorrido e sempre perguntando por você, a quem se referia de forma muito carinhosa...

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