Cantor em fuga

 





O Cine Alvorada está imortalizado! Não falo das belezas das pinturas nordestinas no interior do prédio em si que já foram descaracterizadas, mas da magia e simbolismo que permanecem vivos e pulsantes em nós. Era o nosso centro de convenções e templo das artes. Seus oitocentos lugares revelavam a grandiosidade daquele centro das artes construído em 1962.


Nele vivemos também as alegrias dos programas de auditório nas manhãs de domingo que revelaram inúmeros talentos artísticos que ainda brilham nos tempos atuais. Não faltavam os anônimos que queriam viver seus momentos de estrelato, sem receio nem medo dos julgamentos impiedosos do povo. Aplausos às performances vencedoras e a punição inclemente das vaias na cruel desventura das falhas. O consolo era a promessa vindoura de retorno glorioso. Para os espectadores era pura diversão!

Era um grande desafio para os calouros e amadores lidarem com a reprovação do julgamento da plateia exigente e impiedosa. Parte do sucesso dos programas se devia à habilidade conciliadora dos mediadores, dentre os quais se destacaram os comunicadores e radialistas Chico Soares, Wellington Costa(†) e Adeilson Dantas(†), dentre outros. Sem falar nas participações luxuosas das bandas musicais “Os Naturais” e os “Os Tremendões”, dentre outras.


Naquela manhã apresentar-se-ia Mailson, filho do popular casal Breno Aquino (1930-2021) e Celina Santos (1928-2006), família de destaque dentre os moradores da nossa rua, avenida Nossa Senhora de Lourdes. Seu irmão Marquinhos Santos (1956-1983) era violonista e cantor amador. Com certeza deve ter assessorado o irmão em alguns detalhes e ensaios. Mailson gostava de cantar informalmente. Do tipo brincalhão e gaiato estava sempre aprontando alguma presepada! A canção escolhida para aquele domingo foi “Negue”, um clássico do cancioneiro nacional.

“Negue” (clique para assistir) é um samba-canção composto por Adelino Moreira e Enzo de Almeida Passos. Foi gravado pela primeira vez por Carlos Augusto em 1960, tendo sido lançado como um single no mesmo ano, em um disco de 78 rotações, pela gravadora EMI-Odeon. Nos anos seguintes, a música viria a se tornar um grande sucesso, sendo a canção mais gravada de Adelino Moreira, recebendo versões de Nelson Gonçalves, Cauby Peixoto, Agostinho dos Santos, Joanna, Elymar Santos, Pery Ribeiro, Ângela Maria, Carlos Nobre, Maria Bethânia, Cesária Évora e Camisa de Vênus.

Quando foi anunciado pelo apresentador e cunhado Chico Soares, Mailson recebeu efusivos aplausos e votos de boa interpretação. O início foi tranquilo e seguia dentro da normalidade. Esta canção aparentemente simples tem no seu refrão a parte mais difícil porque exige de seu intérprete a exata noção da sua potência vocal e segurança para cantar o seu refrão, a parte mais alta da música:


(...) Diga que já não me quer, negue que me pertenceu, que eu mostro a boca molhada e ainda marcada pelo beijo teu…” (...)


Não sabemos o que aconteceu. A música vinha sendo bem desenvolvida, porém o calouro tomado pelo nervosismo não conseguiu se manter na tonalidade e desafinou escancaradamente, justamente na primeira palavra do refrão. Foi uma agressão aos ouvidos do público que não perdoou. Foi um deus nos acuda! Mailson azoado, sem saber o que fazer, deixou o microfone no pedestal, pulou do palco e partiu em disparada em direção à porta de saída do cinema em meio às vaias, gritos e risos do público.

Os erros faziam parte do programa e poderia acontecer com qualquer pessoa, contudo a reação incomum do candidato foi hilariante. Restou ao apresentador a missão de arrefecer os ânimos dos presentes e dar prosseguimento à programação, afinal não seria o primeiro, nem o último.

Dias depois, falando sobre o incidente, bem humorado dizia:

- Rapaz, dei um vacilo da gota-serena e ria…

Era regra do programa que se o intérprete falhasse, teria direito a uma segunda oportunidade com outra canção. Mailson retornou e cantou “Preciso lhe encontrar” (clique para ouvir) de autoria de Demétrius, nome artístico de Demétrio Zahra Netto (1942-2019), sucesso na voz de Roberto Carlos em 1970. Dessa vez foi aplaudido de pé pelo público em desagravo.


Outubro,2023

Para saber mais leia as crônicas abaixo:






Comentários

  1. Muitos assistiam exatamente para ouvir os erros dos participantes, seguindo a máxima do egoísmo, que o ridículo no outro é divertido, ainda lembro dos comentários de Chico Canudo, vizinho de terra, -“hoje não foi bom, ninguém levou vaia!”

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  2. Mailson de Seu Breno uma figura boa. Realmente o Cine Alvorada era o Grande Centro de Conveções da nossa Cidade e das Artes..
    Chico Soares um grande animador..
    Boas lembranças, João de Liô.
    Parabéns!!

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  3. Hayton Rocha09/10/2023, 09:13

    Um bom cronista é aquele que narra situações banais sob uma ótica criativa, numa linguagem simples. Você, João, faz isso muito bem. Repare que centenas de “astros” passaram pelo “Alvorada”, mas você nos revela de forma magnífica o inusitado de uma fuga de um desafinado. Mesmo sabendo que no peito dos desafinados também batia um coração, no dizer de um outro João. Parabéns!

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  4. Meninos eu vi! Diria o indio poeta Juca Pirama do maranhense Gonçalves Dias. Eu confesso que vivi esta crônica tão gostoso relembrar. Parabéns nobre amigo escritor João Neto Felix ass Favio Campos

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  5. Muito bem Xará!
    Mais uma crônicacom requintes de detalhes...Parabéns.
    Saudoso Cine Alvorada, de boas lembranças dos filmes, dos programas de auditório, dos artistas que ali se apresentaram, conforme mencionou Hayton, dos quais lembro de Teixeirinha e Mery Teresinha (fazendo o desafio), Nelson Ned (com o seu 1m de altura) e Maurício Reis (o poeta do cravo branco, cantando Veronica).
    Um abraço
    João Neto Oliveira

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    Respostas
    1. Obrigado Xará. Nosso cine está imortalizado nas lembranças, crônicas e contos.

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  6. Jovens tardes de domingo
    Canção de Roberto Carlos

    Eu me lembro com saudade
    O tempo que passou
    O tempo passa tão depressa
    Mas em mim deixou
    Jovens tardes de domingo
    Tantas alegrias
    Velhos tempos
    Belos dias
    Canções usavam formas simples
    Pra falar de amor
    Carrões e gente numa festa
    De sorriso e cor
    Jovens tardes de domingo
    Tantas alegrias
    Velhos tempos
    Belos dias
    Hoje os meus domingos
    São doces recordações
    Daquelas tardes de guitarras
    Sonhos e emoções
    O que foi felicidade
    Me mata agora de saudade
    Velhos tempos
    Belos dias
    Velhos tempos
    Belos dias
    Hoje os meus domingos
    São doces recordações
    Daquelas tardes de guitarras
    Flores e emoções
    O que foi felicidade
    Me mata agora de saudade MARAVILHA!!!

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