Nunca mais outra vez

 



Em 1974 ocorreu uma das maiores tragédias de que se tem notícia em Santana do Ipanema, nas imediações da praça São Pedro, na residência do popular casal Dionísio e Vicência. Dizia-se que ela era uma pessoa alvoroçada, com problemas mentais. Muito popular no bairro, falava alto e conversava desenfreadamente. Temperamental, mudava de humor rapidamente, pronunciando elogios e impropérios com igual intensidade, principalmente se a chamassem pela detestada alcunha de "Barrufa". Seu marido, Dionísio Vicente, apelidado de “Furdunço”, que aliás, também odiava o nome, era pirotécnico de senso comum e exercia o ofício na própria residência. Algo impensável nos dias de hoje.

Na festa de São Pedro, no período junino, era ele que lançava aos céus os foguetes de saudação ao padroeiro dos pescadores no alvorecer, ao meio dia e na hora da “Ave-Maria”, costume que até hoje perdura nas festividades religiosas no Nordeste. Segundo o escritor Clerisvaldo B. das Chagas, a capela foi iniciada em 1915, abandonada só com as paredes e somente foi concluída em 1937, pelo comerciante Tertuliano Nepomuceno. A última reforma ocorreu em 2013.

Dionísio produzia as populares “chuvinhas” e outros fogos de artifício mais simples da categoria, mas não menos perigosos, se não forem manuseados com precaução. Os materiais eram misturados e calcados num pequeno tubo de papel do tamanho e espessura de uma caneta utilizando uma vareta de metal de ponta achatada. O excesso de força poderia deflagrar detonação.

No dia 08.03.1974, sexta-feira, no primeiro horário, a residência deles explodiu, destruindo duas casas vizinhas. A detonação foi tão potente que repercutiu em vários bairros, além de ter sido ouvida a quilômetros. Das seis vítimas, uma era idosa, três adultos, um adolescente e uma criança. Sobreviveu uma criança porque estava no banheiro no quintal - naquele tempo, era comum o banheiro ficar do lado de fora da casa - tomando banho porque ia à escola, um adulto estava no trabalho e Vicência tinha ido à padaria no centro da cidade.

Escapou ileso, sem ferimentos graves o casal que morava numa terceira casa que desmoronou parcialmente. Foram protegidos pelo guarda-roupa que caiu sobre a cama, livrando-os do impacto de destroços.

Adultos, adolescentes e crianças correram para verificar “in loco” o que teria sido aquele estrondo. O cenário era triste e estarrecedor: das casas, restavam escombros e partes desmembradas dos corpos espalhadas no meio da rua e até na calçada da casa de seu Pimpim, do outro lado da praça. Recordamos de uma cena apavorante de seu Costinha e outros voluntários, recolhendo partes dilaceradas e juntando tudo num lençol de morim estendido no chão.

A comoção foi geral. Muita gente compareceu para ajudar. Crianças e adolescentes foram retirados das proximidades do local. A paisagem lúgubre clamava comiseração. A multidão enternecida rezava e chorava copiosamente. Dos restos mortais recolhidos ninguém sabia quem era quem.

Não se sabe ao certo as causas, porém como Dionísio era fumante inveterado de pacaio, uma fagulha pode ter atingido acidentalmente os produtos, provocando reação em cadeia. Poder ter sido, também, o ato de compressão da pólvora nos caniços que seriam transformados em “chuvinhas” ou até um erro de procedimento na manipulação das substâncias inflamáveis, visto que um adulto também estava ajudando na produção dos fogos.

Depois do infortúnio Vicência ficou mais agitada. Vivia perambulando pelas ruas conversando sozinha. Aos conhecidos que encontrava pelo caminho pedia colares e vestidos. Foi morar com a irmã na rua Pedro Brandão, no bairro Camoxinga. Após a morte da irmã, foi transferida para o abrigo de idosos São Vicente de Paulo, onde faleceu.

Em 1976, seu Carlos Gabriel da Silva (Seu Carrito), comerciante tradicional do bairro São Pedro, comprou o terreno das casas destruídas e ali construiu sua residência, quando retornou à terra depois de temporada residindo em Feira de Santana. Era uma casa grande com quatro quartos, duas salas amplas e um anexo que servia de ponto comercial. A família relatava que vozes de lamento eram ouvidas sem explicações e com insistência, tanto de dia quanto à noite, sem que ninguém soubesse identificar sua origem.

Numa noite, às escuras, enquanto todos dormiam, os irmãos Maria e José relataram que estavam na sala de visitas assistindo à tevê quando, de repente, ouviu-se um barulho. Era como se alguém tivesse levantado o cinzeiro que ficava sobre a meia parede que separava os dois ambientes e o tivesse soltado, produzindo um barulho arrepiante, principalmente porque não havia ninguém por perto. Aterrorizados correram para o quarto e foram se esconder debaixo dos lençóis.

Às vésperas do cinquentenário daquele triste dia, prestamos homenagem à memória dos falecidos. Dai-lhes Senhor o descanso eterno.

Agosto, 2023


Comentários

  1. Apesar de triste, parabéns pelo registro...
    Não lembro ao certo mas, depois dessa leitura, tive lampejos de memória, em relação ao ocorrido.
    Nesse período, cursando a 5ª série do 1⁰ grau, no então Colégio Estadual Professor Deraldo Campos, morava (na semana-2ª a 6ª), porque no sábado voltávamos pro sítio, à Rua Belmira Brandão, antiga rua do Velandre e, naquele tempo, por incrível que pareça, 1km é distância que separa a residência do local do ocorrido, não era área comum de convívio.
    João Neto Oliveira

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  2. Eu tinha ouvido falar sobre essa fato, não com tantos detalhes como o exposto. Meu primo, o feirante vendedor de bananas na feira de Santana, esteve no local do ocorrido, segundo ele, a cena era de um verdadeiro filme de terror, aquele fato tirou o sono por muitas noites. Coincidências a parte, o meu irmão, artista plástico Renildo França, nascia no mesmo dia 08 de março de 1974. Vicência era visitante frequente da Asteplan, lugar em que eu trabalhava. Sempre andava com uma bengala de madeira, quando ela entrava todos já sabiam pelo barulho que fazia ao bater a bengala ao chão em cada passo que dava. Boas lembranças!

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    1. A minha mãe Ronalda que também era feirante que ficou embaixo do guarda roupa, o meu avó muito conhecido pela barbearia que tinha na cidade João Tibúrcio., quem nos acolheu em sua casa após essa tragédia.

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