Mumbaça: onde a fé encontra a memória

 

Santuário de Bom Jesus do Pobres, Mumbaça, Traipu AL



Há lugares que não moram no mapa, mas na memória. Mumbaça, povoado de Traipu, é um desses cantos que parecem sussurrar histórias antigas ao ouvido de quem se atreve a escutá-las. Desejei visitá-la por muito tempo como quem busca um pedaço guardado de si mesmo. O arruado quilombola secular recebeu o nome de árvore nativa que havia no lugar, segundo a tradição oral.

A estrada de terra que levou até lá não tem placas nem promessas. Depois de percorrer vinte quilômetros de asfalto, anda-se mais vinte quilômetros de estrada de terra batida, poeira, encruzilhadas e dúvidas. Mas também de lembranças. Enquanto o carro avançava, eu tentava imaginar o trajeto que meu pai fazia nos anos 1970, quando era contratado pela prefeitura para iluminar e animar os festejos do padroeiro. Leuzinger da Rocha Mendes(1918-1985) — ou Liô, como era conhecido — enfrentava o caminho com coragem, mesmo sendo deficiente visual. Para ele, desafio era sinônimo de vida.

Bom Jesus 

A festa do Bom Jesus dos Pobres, que acontece entre 23 de janeiro e 2 de fevereiro é mais que tradição: é fé que pulsa. Romeiros chegam em caravanas, agradecem, exaltam e deixam ex-votos como provas de milagres vividos. Um dos salões da igreja parece um relicário de esperanças. Segundo o historiador Tobias Medeiros, tudo começou com o padre Francisco Correia, que esculpiu a imagem do padroeiro e orientou a construção do santuário no século XVIII.

Naquela época, meu pai levava um grupo gerador a diesel, gambiarras, amplificador, alto-falantes e toca-discos. No seu jipe Willys de quatro portas, apelidado de Bernardão,  guiado por Dema de Zé Sabão, na companhia do eletricista Zé Izidoro, vencia as longínquas estradas sertão afora. Era uma equipe pequena, mas movida por um propósito maior: fazer a fé ecoar.

Quando finalmente avistei a ladeira do povoado, senti um alívio que não cabia no peito. Era como se eu tivesse reencontrado não só um lugar, mas uma parte da minha história porque os caminhos da memória também têm seus desafios e, às vezes, são mais difíceis de percorrer do que qualquer estrada de barro.

Encontrei um belo santuário numa praça reformada, que demonstra o cuidado do povo com a fé. Ao entrar no templo, senti uma alegria e paz interior. Achei tudo mais bonito do que havia imaginado: nostálgico, imenso, acolhedor. Tentei visualizar aquele ambiente nos tempos idos, ouvindo o barulho do motor que acendia todas as luzes da festa. No pátio do santuário imaginei seu Liô feliz por fazer o que gostava,  atento a tudo para garantir a alegria do povo nos festejos. 

Imaginei também meu encontro além de Santana com o missionário padre Francisco Correia(1757-1848) — homem de fé, escultor e arquiteto de sonhos. O altar-mor do santuário é todo de madeira e permite aos fiéis visitar a imagem do Bom Jesus, subindo e descendo escadarias laterais, passando defronte ao nicho central. A escultura é  protegida por um parapeito de madeira. Um projeto inovador, feito para aproximar o sagrado do povo. Tocar a escultura do Bom Jesus me levou em pensamentos de encontro ao reverendíssimo missionário no instante em que se entronizou o santo padroeiro Bom Jesus dos Pobres, invocando bençãos e proteção.

Mumbaça não é só um lugar. É um elo entre gerações, uma ponte entre fé e memória. E, para mim, é também reencontro; com meu pai, com minha história, com tudo aquilo que ainda pulsa dentro de mim.


Outubro, 2025

Sala dos ex-votos

Nave Central



Altar-mor de madeira

Comentários

  1. Parabéns confrade João Neto Felix Excelente crônica! Verdadeira incursão ao passado cultural, espiritual e familiar. Em Alagoas apenas um vilarejo de Traipu, no Quenia, na África, a 2ª maior cidade do país.

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  2. 👏👏👏 Primoroso registro, mesclando passado e presente, a serem preservados para permanecerem vivos no futuro.

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