A grande escritora Raquel de Queiroz, numa das suas últimas crônicas para “O CRUZEIRO”, revelando o que aprendera dos outros e também ao mesmo passo mostrando as suas próprias concepções, advertiu ser verdade que o diabo tem uma grande capa, com à qual vai de começo incutindo impenetravelmente os crimes misteriosos que se praticam em toda parte. E bem assim, distendendo esse imenso manto negro ao longo braço igualmente negro e macabro, vai encobrindo muita coisa má e condenável.
Mas para o maior desespero com a outra mão badala uma enorme campa que vai logo descobrindo as suas pancadas estridentes o verdadeiro criminoso. Encapa, mas ao mesmo tempo, desencapa.
Daí se infere que não há realmente crime perfeito. Daí se concluirá que nenhum criminoso se sentirá verdadeiramente seguro do crime praticado. Seja lá qual tenha participado, seja lá qual tenha sido a sua natureza. Seja o maior ou seja o menor delito. E graças a essa circunstância salvadora é que vem a proteção para aqueles que são o alvo da sanha dos malfeitores.
Sabe-se que tal recompensa não vem por efeito da influência diabólica. Emana com certeza de um poder muito superior e muito mais forte.
Na verdade, às vezes deve ser um terrível espantalho para o criminoso, antes e mesmo depois de praticar o crime, a reflexão de que em tempo algum estará isento de uma responsabilidade.
Tenhamos presente que isso é um fato, embora que alguns são tão embrutecidos que momentaneamente não o aceitem. Desdenham. Entretanto quando vêm as modificações que depois obedecem ao grande badalar da grande campa daquela imagem, daquele bom conceito da intelectual patrícia, e também sob o peso da responsabilidade e remorso, eis que a terrível sentença é recebida na maioria dos casos em pandemônio e como uma coisa irremediável. Pelo menos é assim que em todos os tempos se tem observado em várias ocorrências.
Miguel Bulhões, 19 de setembro de 1954
O Choque de Duas Ocorrências
Com grande retumbância forma-se desde 1951 até a data presente da sede neste município, ou melhor, pretende-se formar, uma ocorrência segundo a qual a nossa atual administração municipal deverá ser considerada como a melhor do Estado.
Há na vila de Capim um velho açude público, relativamente muito importante. Pois bem.
Eu verifiquei pessoalmente no princípio desta terceira semana de agosto, estarem pastando dentro do recinto do referido açude dois burros de sela.
Verifiquei ainda que um dos animais no momento estava com as traseiras apenas com meio metro de distância da extremidade da água que se destinará ao consumo público.
Apesar do meu espanto, conquanto venha colhendo de muito tempo razões para não me espantar, responderam-me que quadrúpedes eram dos empregados da Prefeitura. Aqueles e outros mais que comiam ali diariamente.
"De alguns do grande exército de empregados da Prefeitura adotado nesta época pré-eleitoral à custa desta coisa que deveria ser sagrada que é justamente o dinheiro do povo", acrescentei eu nesse instante.
Não se pode alegar que o açude seja deste ou daquele património, para atribuir-se a quem deve caber o zelo. Há mais de cem anos foi construído por particulares como sendo o melhor do seu tempo.
Em 1949 serviu de pretexto para que o Estado gastasse nele muito dinheiro. Mas ultimamente foi a Prefeitura que lhe fez uma grande limpeza, embora quase que incompleta. Portanto acho que esta ocorrência de agora por parte dos seus empregados vem flagrantemente chocar-se com aquela que mencionei no princípio desta correspondência.
Miguel Bulhões, 29 agosto de 1954.
Como se Batizam os Lugares
Em época que já nos vai ficando bem remota, todo o interior do nosso município, bem como todos os demais do ¹"hinterland" brasileiro, era coberto de matas compactas na sua maioria extensão. Bem separadamente era que se encontravam as fazendas com os seus respectivos moradores. Era assim dessa maneira que se localizava o sítio "Olho d'Água da Cruz", ainda hoje com este nome mas com a grande transformação em seu panorama, graças à grande devastação que sofreu ininterruptamente. Joaquinzinho era o seu prestigioso proprietário.
(Joaquim Rodrigues Gaia Júnior, eis o seu nome todo). Mais distante e para o lado do poente, subordinada à mesma propriedade "Olho d'Água da Cruz", já se conhecia outra localidade ainda sem nenhuma exploração agrícola, servindo apenas para as pastagens do gado daquele dono. Já era costume que não mais despertava a admiração de ninguém, a convivência de alguns carneiros com as vacas do fazendeiro.
Para onde estas seguiam aqueles acompanhavam também invariavelmente. Assim é que juntos dormiam, juntos bebiam, juntos comiam. Com a ocorrência de uma trovoada caída naquele outro lugar mais afastado, que até então se denominava “Bom Nome”, houve a natural atração e o gado para lá se dirigiu levando como era inevitável o pequeno rebanho de carneiros como que formando-lhe as sombras menores.
Foi bem justo que a terra molhada numa época de verão generalizado agradasse muito mais aos visitantes daquele dia. E, assim sendo, efetivamente, a noite os envolveu sem que tivessem encetado a marcha para o regresso.
Logo na mesma noite houve por parte do pessoal da casa muita apreensão pela ausência dos animais e principalmente ou mesmo unicamente por causa dos carneiros. As onças com certeza os comeriam nessa noite. Onça. naquele tempo e nessa mata densa, era uma circunstância agravante com que sempre se contava. Além dos mais, sempre se contavam as histórias de onça.
Ainda bem não raiara a manhã seguinte que com certeza fora radiosa, e o senhor Joaquinzinho ordenou que os escravos dessem logo a indispensável busca. Felizmente que tudo se encontrou em completa paz. As onças, se farejaram e com certeza farejaram, nada puderam desfrutar. É que o instinto de conservação fez com que os carneiros, naquela noite com dormida estranha, se abrigassem todos sob as barbatanas das vacas.
Sabe-se que a onça respeita em todas as circunstâncias o touro do rebanho. Também por outro instinto de conservação elas não se atreveram a fazer a verificação se por ali rondava algum touro.
E os carneiros se desamparados estivessem dariam um ótimo repasto para todas da redondeza. Desde então ficou o lugar de pernoite forçado para os carneiros recebendo outra denominação. Perdeu para sempre o nome poético de “Bom Nome” que tinha. Quando se perguntava onde se dava qualquer ocorrência posterior respondia-se que tinha sido na noite que deu agasalho aos carneiros. Com o tempo foram abreviando. Foi na noite dos carneiros. Foi nos carneiros. E de seis anos para cá o lugar é um povoado com aspecto de vila. E Carneiros é o seu nome definitivo. Na maioria dos casos é assim que se batizam os lugares.
¹Hinterland é uma palavra alemã que significa a 'terra atrás' de uma cidade.
Miguel Bulhões,15 de agosto de 1954
Sobre Nossa Agricultura
Bem ao contrário do que ocorreu no ano passado é o que está acontecendo no tocante à nossa agricultura nos dias presentes. Nesta última etapa das nossas chuvas e dos nossos trabalhos que, conjugadamente formariam a nossa nova produção, sintomas outros se mostram realmente desanimadores.
Podemos dizer que estamos em suspenso. Estamos com o coração na boca, tal a nossa grande incerteza neste nosso fim de inverno. Além do desenvolvimento acanhado, enfezado, encolhido com que se apresenta desde o começo a nossa plantação de feijão, estamos agora neste fim de julho sofrendo grande carência de chuvas. E sendo que não se interrompa tal perspectiva, ser-nos-á com certeza descomunal o nosso prejuízo. E ainda mais estamos perdendo por outros fatores. O frio tem sido nestes últimos dias com mais intensidade do que tem ocorrido nos outros anos. Acontecimento este vai influindo grandemente por atrofiar o bom desenvolvimento que deveria ter a lavoura desta época, isto é, da lavoura do inverno propriamente dito.
Surpreendentemente as chuvas cederam, ou melhor, estão cedendo espaço ao sol. São, portanto, duas inconveniências que se aliaram contra o nosso labor: o frio e o estio. E caso se concretize a entrada do verão assim tão cedo, como está parecendo, o prejuízo será bem generalizado. Estender-se-á, também, à lavoura algodoeira. Sem chuvas regulares até outubro, como uma boa continuação do inverno, também não teremos boa, a primeira safra de algodão. Sim, a primeira, porque a segunda, a do verão, dependerá das trovoadas de novembro e dezembro. Se vierem. É também um acontecimento duvidoso.
A boa regra é agir e esperar com muito acerto no que depender da cabeça e da mão do homem.
Para saber mais sobre o autor (Clique aqui)
Miguel Bulhões, 08 agosto de 1954
Referência:
Jornal de Alagoas, página dos Municípios. Acervo do Arquivo Público de Alagoas, Maceió. Volume Julho, Agosto e Setembro de 1954.
Que beleza de artigos do Maestro Bulhões resgatado por você, João de Liô, !!
ResponderExcluirSão pérolas que se encontravam arquivadas e agora apreciando essas jóias: A Capa e a Campa, O Choque de Duas Ocorrências, Como se Batizam os Lugares e Sobre nosso Agricultura..
Parabéns, mais uma vez pelo resgate, Xará!