A esquina do medo(Conto)

 



Praça das Coordenadas e rua Dr. Arsênio Moreira


Quando o carro da mudança estacionou na casa de esquina, Jacinto ficou empolgado com a chegada dos novos vizinhos que incluíam crianças. Imaginou ele que a chegada de mais meninos iriam reforçar a turma molecada e, por conseguinte, a animação da rua. Entretanto, ele jamais imaginou o que estaria por vir.

Será que o comportamento reservado dos novos moradores era consequência do impacto da mudança ou eram pessoas arredias e de poucas conversas? A sua cabeça era um turbilhão de dúvidas, com muitas perguntas e nenhuma resposta. Após vários dias, ainda aguardava ansiosamente que os meninos aparecessem na calçada, em vão. Nada aconteceu. Pelo contrário, a ausência de interação social dos meninos daquela casa era um grande mistério.

Com o passar do tempo sua decepção só aumentava. Eles continuavam isolados. Eram vistos rapidamente somente na saída e chegada da escola. O pai saía cedo da manhã e voltava tarde da noite e a mãe, ninguém via, desde a chegada.

Por alguma razão desconhecida, Jacinto sofria de enurese noturna e, por isso, dormia na rede armada na sala da casa. Embora desconhecesse as causas, aquela disfunção não era normal e o incomodava. Aquele problema era o seu maior segredo e motivo de sua angústia.

Por volta da meia-noite, começaram uns sussurros na casa dos recém-chegados. Depois, eram ouvidos gemidos pungentes e abafados que revelavam uma agonia lancinante, sem nenhuma palavra pronunciada. Jacinto assustado, fechou os olhos e permaneceu imóvel. Como medo, uniu as bordas do tecido cru da rede para se isolar do temor que o invadia. Depois, cobriu-se completamente com o seu lençol. Aquele casulo improvisado era o seu escudo de proteção, pensava.

Passaram-se dias e semanas com aquela amargura psicológica que o consumia. Sofria interiormente e se sentia só, sem ninguém para desabafar. Em seu pensamento, todos os monstros e criaturas medonhas que atacavam aquela mulher e a faziam sofrer poderiam atravessar as paredes e castigá-lo também, só porque fazia xixi na rede. Sentia-se acorrentado por sentimentos terríveis que nem ele sabia descrever.

Passaram meses e tudo permaneceu inalterado na rotina daquela família. Exceto o pai, que saía e chegava do trabalho, os meninos eram reclusos e a mãe nunca apareceu, nem na pequena varanda da casa. Altas horas tudo recomeçava. O pânico era a mordaça que calava e imobilizava Jacinto que nada podia fazer. Aquela mulher era digna de comiseração e os familiares pareciam impedidos de esboçar qualquer reação. Até quanto aquela alma seria obrigada a viver naquele sofrimento?

Certa manhã, a rua amanheceu diferente. Um carro parou em frente à casa da família misteriosa. Dois homens desceram, conversaram com o pai e entraram. Os vizinhos espiavam pelas frestas das janelas, mas ninguém ousava sair. Pouco tempo depois a mulher foi levada envolta por um lençol branco, sem que ninguém visse seu rosto.

Jacinto observava tudo, discretamente, com o coração apertado. Os gritos cessaram naquela noite, mas o silêncio que se instalou parecia ainda mais aflitivo. A casa continuava ali com as portas e janelas fechadas como se guardasse segredos insondáveis.

Ele cresceu sem respostas. E, ao passar pela rua, evitava reviver antigas lembranças. Preferia lembrar da infância como um tempo de brincadeiras, conquanto soubesse que, atrás das paredes, havia histórias que ninguém teve coragem de contar.

Pouco tempo depois do internamento da mulher, a casa da esquina voltou a silenciar de forma definitiva. Sem alarde, a família fez as malas e partiu. Um caminhão de mudança chegou numa manhã nublada, e em poucas horas, tudo foi retirado. Nenhum vizinho se despediu. Nenhuma explicação foi dada.

Jacinto, observava tudo sem entender. Sentiu um vazio estranho, como se algo tivesse sido arrancado da rua - não apenas uma família -, mas um pedaço de história que ninguém quis guardar.

Os anos se passaram. Os meninos da casa vizinha cresceram e foram estudar em outra cidade. Jacinto ouvia falar, de vez em quando, que um deles virou engenheiro e outro, professor. Mas nunca soube se voltaram a falar com a mãe. Nunca soube se ela melhorou, se viveu, se foi esquecida.

Jacinto também cresceu. A enurese cessou, mas o medo, não! Tornou-se um homem calado, observador, daqueles que carregam perguntas sem respostas. Passava pela antiga rua com frequência, e a casa da esquina, agora com pintura descascada e janelas quebradas, parecia ainda guardar os gritos abafados das madrugadas sinistras.

Em algumas noites, sonhava com a rede, com o lençol branco e com os olhos da mulher que nunca viu. Acordava com o coração apertado, como se o mistério ainda estivesse vivo, esperando para ser desvendado.

Jacinto tornou-se adulto sem nunca ter esquecido completamente daquele enigma da infância. Não a infância das brincadeiras, mas aquela que se escondeu atrás da rede úmida, ouvindo lamúrias contidas e tentando entender o que não tinha explicação.

Formou-se em Letras, talvez por ironia do destino, queria dar nome ao que nunca foi dito. Tornou-se professor, e nas redações dos alunos, buscava pistas de outros silêncios, outros medos. Às vezes, encontrava frases que o faziam lembrar da casa da esquina: “Minha mãe chora à noite”, escreveu certa vez uma menina de olhos tristes. Jacinto não teve coragem de perguntar mais.

Nunca se casou. Tinha amigos, mas poucos sabiam da história que o acompanhava como sombra. Em noites de insônia, voltava mentalmente à rua da infância. Imaginava a mulher, os filhos, o pai. Tentava reconstruir os rostos, os gestos, os sons. Mas tudo era fragmentado, como um sonho que se desfaz ao acordar.

Um dia, já com cabelos grisalhos, Jacinto decidiu voltar à rua onde tudo começou. A casa da esquina estava abandonada, com o portão enferrujado e o mato tomando do pequeno canteiro. Ele se aproximou devagar, como quem visita um túmulo. Tocou a parede descascada e sentiu um arrepio. Era como se a casa ainda respirasse, como se os gritos estivessem guardados entre os tijolos.

No chão da varanda, encontrou um pedaço de papel amarelado, quase ilegível. Nele, apenas uma frase escrita à mão:

“Não era loucura. Era dor.”

Jacinto guardou o papel no bolso e foi embora. Não precisava de respostas. Algumas histórias não se resolvem, apenas permanecem.


Agosto, 2025

Comentários

  1. É uma excelente crônica em forma de sinopse para se transformar em um roteiro de um thriller. Que tal fazer isso?

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  2. Parabéns confrade João Neto Felix excelente conto. O leitor envolvido pela história, nem bate as pestanas, quer saber no que vai dar. Muito bom mesmo. ass. Fabio Campos.

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