Evocação do futebol santanense: como surgem os craques?

 


“Futebol é alegria
E o gol a grande emoção,
O psicólogo defende,
Faz liberar a tensão.
Nesse campo eu vou entrar,
Leitor eu quero falar
Do futebol no sertão”. 



Em Santana do Ipanema, uma pequena cidade no médio sertão de Alagoas, um fato especial aconteceu numa numerosa família sertaneja que lutava para educar os filhos e conquistar seu lugar ao sol. Estamos relembrando o casal José Oliveira Queiroz(1916-2008), conhecido como Zé Cirilo e Sebastiana Rodrigues Oliveira(1909-2002). Seus filhos: Elenice(†), Manoel, Maria(†), Maria José, Erasmo, Vandilma e Sebastião(†).


Zé Cirilo era um típico sertanejo batalhador que exercia o ofício de caminhoneiro, fretando seu caminhão para viagens ao Sudeste e Sul do País e vice-versa. Na região, transportava os feirantes pracistas para vendas de seus produtos nas cidades do entorno. Muito conhecido pelo seu temperamento nervoso e, quando irritado, sua marca era proferir palavrões. Era a forma de acalmar sua fúria.

Nem o rio Ipanema escapou dos xingamentos quando as cheias invadiam suas terras nos limites da calha natural, destruindo cercas e melhoramentos. O valente rio intermitente foi até ameaçado com arma de fogo!! Mas, segundo Manoel Cirilo, eram apenas desabafos raivosos, sem nenhuma consequência prática.

Sabedor do humor ácido de seu Zé, perguntei ao Manoel Cirilo como uma pessoa tão estressada permitiu que seus três filhos mais novos praticassem futebol e se tornassem craques reconhecidos na história esportiva da cidade? Argumentou Manoel que seu pai em casa era um homem amoroso, torcedor fanático do Clube de Regatas Vasco da Gama que, como todo pai, presenteava os meninos com bolas e as meninas, bonecas. O segredo da convivência era ouvir e deixá-lo falar até se  acalmar, sem confrontos.

Relembrou que nos tempos de infância, uma das principais diversões dos adolescentes era jogar bola despretensiosamente no meio da rua Nova (Benedito Melo), - onde moravam - e nos diversos terrenos baldios espalhados pela cidade. Destacaram-se os imóveis de seu Abílio Pereira, na rua Nossa Senhora de Fátima, de piçarra, ao lado do Tênis Clube; no chão batido dentro do Grupo Escolar Padre Francisco Correia, na Fazenda Baixio de seu Nozinho e nos areões que se formavam no leito e às margens do rio Ipanema após as enchentes.

Foram nesses locais que pouco a pouco os talentosos irmãos entenderam que a bola não era uma inimiga como o touro numa corrida; quando agitada ela parecia ter reações próprias e independentes. Com paciência, jeito, parceria e cumplicidade, tornaram-se íntimos, lidando com malícia e atenção, dando aos pés astúcia de mão.

No coração da família de seu Zé, havia um contraste que trazia orgulho e esperança. Seus filhos Manoel, Tião e Erasmo tornaram-se prestigiados jogadores de futebol. Nas viagens que fazia para o Sudeste, ele trazia camisetas, copos e canecas temáticas do Flamengo e Vasco, paixão dos filhos. Cresceram entre as pedras e a poeira, mas as habilidades e destrezas com a bola transcenderam as dificuldades sertanejas.

Manoel Oliveira Queiroz, conhecido como Manoel Cirilo trazia no nome o apelido do pai, com sua incrível resistência e passes precisos, era conhecido por distribuir as jogadas. Tornou-se um requisitado meia direita, atuando no meio-campo, na zona direita, entre o centro e a ponta direita. Era responsável por controlar o jogo, criar oportunidades de ataque e contribuir na defesa. E, de agrado, sempre fazendo gols! Muitos gols.

Em 1964, aprovado em concurso, foi admitido no Banco do Brasil, onde trabalhou por 30 anos até sua aposentadoria em 1994. Foi também no banco que recebeu um dos apelidos mais famosos da cidade e que, segundo ele, poucas vezes o fez se aborrecer. E é claro que eu pedi que me contasse sobre a origem da brincadeira para elucidar, de uma vez por todas, as especulações motivacionais da gozação.

Naquele tempo os bancários adoravam batizar os colegas com apelidos. Fazia parte da interação social. Contou-nos Manoel que em 1964, o prédio do BB ainda era no centro da cidade. No período, ele trabalhava no setor agrícola com o colega Antônio Carlos, natural de Arapiraca, tomando propostas dos agricultores e, entre um e outro atendimento, ele cantava assim:

- Oh, Mané, cadê o bode, tá comendo ¹calumbi !

Antônio Carlos contou ao Manoel que esse verso era cantado por um palhaço de circo que havia se apresentado em Arapiraca. Outro colega do setor, Luizinho(Luiz de Albuquerque Lima)-, esposo de Gracita Canuto Lima(†), empresária do ramo de tecidos “Casas Lima” que anos depois se mudou para Arapiraca - nos intervalos dos trabalhos dizia enfaticamente:

- Mané, cadê o peste do bode?

E assim, o apelido perdura até os dias atuais: “Mané do Bode”.

Erasmo Oliveira Queiroz, tinha uma visão de jogo e potência de chute que fazia qualquer goleiro estremecer de medo quando ele ultrapassava a linha divisória do gramado com bola dominada. Atuava como lateral direito que gostava de apoiar o ataque, mas voltava com rapidez protegendo o meio campo de contragolpes. Foi Erasmo quem quebrou a hegemonia da família ao torcer pelo Clube de Regatas do Flamengo, visto que o pai e os outros irmãos eram vascaínos.

Nos anos 1970, seu Zé Cirilo comprou um salão próximo à praça São Pedro e ali montou uma mercearia que durante alguns anos foi administrada por Lelé (Guilhermino), irmão de Zé Cirilo. Com o passar dos anos, a mercearia passou a ser administrada por Erasmo, que ali agregou os serviços de bar, tornando-se um dos principais pontos de encontro dos amigos e de jogos de dominó. E aqui quero registrar que, meu pai (Liô) de saudosa memória, era um assíduo frequentador dos jogos de dominó. Assim, Erasmo se consolidou como empreendedor como foi seu pai.

Sebastião Oliveira Queiroz(1952-2018), mais conhecido como Tião. Mais novo e franzino dos três, era um paredão na defesa, requisitado por todas as equipes pela segurança e determinação como zagueiro. Sua força parecia incompatível com o seu porte. Confessou Manoel que ele era o mais versátil, com habilidade e disposição incrível para jogar em qualquer posição. Até como goleiro teve atuações decisivas e dignas de nota.

Trabalhou na Cooperativa Agropecuário Regional de Santana do Ipanema e se aposentou na ADEAL-Agência de Defesa e Inspeção Agropecuária de Alagoas.



O talento dos três logo se espalhou pela cidade, e não demorou muito para que fossem convidados a integrar as equipes locais nos principais torneios interioranos, nas modalidades campo e salão. Em cada partida, eles levavam a força e a resiliência do sertanejo, transformando o suor em vitória e o cansaço em perseverança. Intimamente seu Zé  se orgulhava profundamente, mesmo que não demonstrasse em público.

Quando o rio transbordava e a preocupação tomava conta de seu Zé, seus filhos estavam lá para lembrar-lhe do poder da esperança e de que o talento floresce nos lugares mais improváveis e quase sem a gente perceber. O sertão pode ser árido, o rio pode ser implacável, mas no coração daquela família, havia uma força indomável que a mantinha unida.

O sertão continuava a ser um lugar de contrastes, onde a dureza da terra era suavizada pelo talento e paixão do trio pelo futebol que carregava consigo os sonhos de que o esporte transforma vidas e contribui para formar cidadãos de bem. Parabéns ao Erasmo que amanhã completará 77 anos.




“Dê bola para as crianças,
Ensine-as a amar...
Onde você estiver
Não deixe de apoiar
Essa minha seleção,
Pois igual ao meu Sertão
Outro futebol não há.”





Maio, 2025



Referências:
¹Calumbi é um outro nome do arbusto "rasga beiço" ou "jurema branca";
Versos de Literatura de Cordel, de autoria de Valentim Quaresma publicados no site: www.projetocordel.com.br;
Citação de versos do livro “Museu de Tudo", de João Cabral de Melo Neto;
Depoimento de Manoel Cirilo, em 29.04.2025.










Comentários

  1. Erasmo era o melhor dos três...era bom, mesmo...

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  2. Hoje você se superou. Além da História dos Círilos ainda foi fundo no cordel

    Abraços do Antonio Sobrinho

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  3. Que linda crônica!sua memória incrível e a .maneira como brinca com as palavras me faz sentir ,que terei um belo dia.

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  4. Parabéns pela crônica. A família do Sr José Cirilo é um orgulho para o futebol Santanense. Fui frequentador assíduo do "bar de Erasmo" e tenho o privilégio de ser amigo dos 3 irmãos homenageados( Tião já em outra dimensão)!

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